Geralmente a avó começava a gritar-lhe no instante em que a porta se abria, indagando por que Ludmila se demorara no bosque ou se, por acaso, se comportara mal na escola e por isso fora castigada. Havia ocasiões em que a avó nem mesmo isso dizia, arremessando o travesseiro contra Ludmila, sempre preparada para pular de lado. Mas naquele dia foi diferente. Nenhum travesseiro foi-lhe arremessado. E também não houve gritos.
— Babushka?
Arriscando um olhar para a avó, Ludmila viu as trancas brancas espalhadas sobre o travesseiro e a coberta puxada para o alto, como a arrumara algumas horas antes. Teve vontade de dizer: “Perdoe-me pelo que fiz esta manhã, Babushka. Não queria ser uma menina má. Por favor, perdoe-me e diga alguma coisa. Por favor...”
Se a avó não falasse agora, passaria dias e dias sem dizer coisa alguma. Nem uma única palavra. Talvez só voltasse a falar depois que a neve começasse a cair e o pai e irmãos de Ludmila tivessem voltado da colheita.
Cuidadosamente, para não acordar a avó, Ludmila arrumou os rabanetes e o repolho sobre a mesa, juntamente com uma preciosa fatia de porco salgado. E depois foi pôr lenha no fogo. Babushka vivia-se queixando de estar com frio, mesmo no tempo mais quente. A cada dia, Ludmila tinha que descrever círculos maiores pelo bosque, a fim de pegar lenha. Na primavera seguinte, pediria ao pai e irmãos para deixarem uma pilha maior de lenha, antes de partirem para a colheita no início do verão. Se Babushka quisera a cabana mais quente naquele verão do que no anterior, certamente haveria de querê-la ainda mais quente no verão seguinte.
Mas, por outro lado, Ludmila já estaria então com 13 anos e seria capaz de cortar alguma lenha. Ou pelo menos os galhos mais baixos dos pinheiros e bétulas em torno da clareira. Se pudesse fazê-lo, os homens teriam o tempo necessário para escavar o poço que algum dia levaria água para dentro da cabana. Ou talvez pudessem fazer um cercado em torno da horta, a fim de que os coelhos e veados não roubassem tudo o que plantavam, como vinha acontecendo. E agora quase não havia comida para o inverno que se avizinhava. O simples pensamento deixou-a mais faminta do que o habitual. E quase já não havia rublos em casa, até que o pai voltasse.
Evitando olhar para a avó, que detestava ser surpreendida dormindo, Ludmila fritou o porco, descascou os rabanetes e cortou o repolho, pondo tudo para cozinhar no fogo, com o resto de água que ainda estava no balde. Pôs o xale e saiu de novo, atravessando a clareira na direção do riacho que corria ruidosamente sobre as pedras, quase como uma balalaica de Shura.
Se ficasse fora de casa por mais algum tempo, Babushka continuaria a dormir e haveria menos tempo para que se queixasse. De qualquer forma, era melhor ficar ali fora, pensando e contemplando as moitas e as árvores. E o cheiro era também melhor. O cheiro no interior da cabana era simplesmente horrível.
Ao voltar para casa, fingiria que acabara de chegar da escola e do armazém. A avó, como sempre, poderia gritar ou jogar-lhe o travesseiro. Depois, tomariam a sopa e iriam dormir. Dentro de alguns dias, talvez uma semana, o pai e os irmãos estariam de novo em casa. Babushka ficava mais calma sempre que eles estavam em casa. Mas era como o pai dissera, na primavera anterior:
— Se você tivesse que ficar na cama com as pernas paralíticas, minha querida Ludmila, também estaria rabugenta e implicante.
Se o pai o dissera, então era assim mesmo. Afinal, ele não era o melhor pai que existia no mundo? Ajudava-a nos deveres de casa e sempre aparecia na escola nos dias mais escuros do inverno, no momento em que Ludmila se preparava para iniciar a longa e solitária viagem de volta a casa, através dos bosques. O Camarada Varvara, o mestre-escola, dizia que cada pessoa devia produzir de acordo com sua capacidade e colher de acordo com suas necessidades. Mas a avó comia sem produzir qualquer alimento. O pai dizia que, na idade dela, isso era natural; no passado, a avó já produzira muito.
Naquele verão, quando os passarinhos e outros animais vinham devorar a horta, quando não havia forragem para alimentar o gado e os carneiros, quando não havia o que dar aos porcos e galinhas, estavam presentes todos os indícios de que os lobos voltariam a aparecer no próximo inverno, segundo o velho Nikolai, do armazém. Há três anos que ninguém da aldeia via um lobo. Mas todos sabiam que, quando as pessoas morriam de fome, os lobos sempre apareciam.
Ludmila jamais vira um lobo, mas já os ouvira uivando. E com bastante frequência. Babushka sempre dizendo que as meninas más só serviam mesmo para alimentar animais selvagens.
Ah, seria maravilhoso quando o pai e os sete irmãos voltassem! Provavelmente ainda naquela semana, dissera o velho Nikolai, sacudindo a cabeça tristemente, porque um retorno prematuro significava uma má colheita e menos comida para todos. De qualquer maneira, o pai manteria os lobos longe da cabana, como sempre o fizera antes.
Assim que todos estivessem em casa, não mais haveria as manhãs escuras e solitárias, quando Ludmila tinha que se levantar da cama em que dormia com a avó, quebrar o gelo no balde com água e cozinhar a kasha, depois de ajudar Babushka com o penico.
Havia ocasiões em que a avó reclamava tanto e a retardava de tal forma que Ludmila tinha de correr pelo bosque até a estrada e daí até a aldeia, mesmo assim chegando atrasada à sala comunal onde funcionava a escola. O Camarada Varvara sempre a castigava com deveres de casa extras, a serem feitos à luz de vela. Se a avó pelo menos pudesse produzir velas ou não demorasse tanto no penico...
E lá estava a primeira estrela. Outras despontaram um instante depois, brilhando cada vez mais intensamente, apesar da lua já estar subindo pelo ar, que naquela noite estava tão amarela quanto as bétulas durante o dia. Uma noite maravilhosa, impregnada pelos sussurros que vinham do bosque.
No ano passado, o pai e os irmãos tinham chegado um mês depois, cantando ruidosamente, vindos da aldeia, onde os caminhões tinham-nos deixado. Haviam saído correndo ao verem-na acenar, disputando para ver quem a alcançaria primeiro. Quem quer que o conseguisse, imediatamente a levantava nos braços e quase a sufocava de apertos e beijos, demorando bastante antes de largá-la para o seguinte na fila. Mas nenhum deles jamais corria para beijar a avó.
Seria ótimo se eles voltassem mais cedo este ano, como o velho Nikolai afirmava que iria acontecer. Mas seria triste por causa das pessoas que iriam morrer de fome naquele inverno, talvez até algumas de sua própria comuna.
Qual das pessoas de sua família poderia morrer?
Não o pai, que era forte e saudável. Não os irmãos, porque eram jovens e fortes. Não Babushka, que não era jovem nem saudável, mas era a mais forte de todos. Era o que o pai estava sempre dizendo. Cada vez que Babushka lhe perguntava:
— Quem é o mais forte de todos nós?
— E você, querida mãezinha.
Babushka sacudia a cabeça e sorria, mostrando as gengivas encolhidas. Os sete meninos e Ludmila riam e aclamavam. Porque o pai sempre se postava num lugar em que Babushka não podia vê-lo e piscava alegremente, para indicar o que realmente pensava.
Mas com todos eles tão fortes, restava apenas uma pessoa que era fraca. Uma menina má, que não podia cortar lenha, que ficava irritada quando Babushka se demorava no penico todas as manhas, que detestava trazer-lhe água para que se lavasse, que não gostava de arrumar a cama e ajeitar o travesseiro sob as trancas brancas.
Pobre Babushka... Era fácil demais odiá-la, era difícil recordar que estava velha e aleijada. Mas como alguém poderia amá-la, se cheirava tão mal e gritava tanto? Naquela manhã, quando Ludmila já estava atrasada para a escola, Babushka arremessara-lhe o travesseiro, alegando que estava duro. Ludmila desatara a chorar. Jogara o travesseiro contra a avó, vendo-o cair sobre o rosto encarquilhado. Minutos depois estava correndo a caminho da escola, o mais depressa que podia, chorando sem parar.
Mais estrelas. Ao luar, as sombras iam ficando cada vez mais difusas e compridas. Ludmila afastou-se do córrego e atravessou a clareira até a porta da cabana. Sentou-se no balde virado ao contrário, sem querer entrar.
Um grito ou um travesseiro em sua cara? Uma queixa ou uma exigência? O que aconteceria se reagisse ao grito? Ou se tornasse a jogar o travesseiro em Babushka? E se ela não entrasse, ficando ali fora, à espera do pai e dos irmãos?
Quando eles chegassem Ludmila gostaria mesmo de ficar dentro de casa. A cabana estaria então ressoando de conversas e risadas. E de noite
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ouviria o violino de Oleg e a balalaica de Shura, sob o acompanhamento das palmas ritmadas do pai. Rodio, Vukuly e Kyril dançariam um gopak. E depois Ludmila valsaria com todos eles, contando cuidadosamente para que não brigassem para decidir quem seria o próximo. Não havia música e dança todas as noites, porque, uma vez por semana, os homens iam até a aldeia, para beber cerveja e conversar com os amigos.
Se ela morresse de fome naquele inverno, com quem eles iriam dançar? Ludmila assoou o nariz com a ponta do xale. Morrer talvez não fosse tão ruim assim. No céu, ela descobriria pessoalmente como a mãe era. É verdade que o Camarada Varvara dissera que não existia o paraíso. Ela contara a história ao pai, que comentara:
— É bem possível. Mas, seja como for, sua mãe era um anjo.
Só que o pai não conseguia recordar-se se ela era grande ou pequena, feia ou bonita. Sabia apenas que tinha sido a mulher certa para ele e jamais descobrira outra igual.
Babushka dizia que nenhuma mulher, muito menos a segunda esposa do filho, merecia tal devoção. Além do mais, ele não precisava de uma segunda esposa, já tendo sete filhos homens. O que a segunda esposa poderia fazer a não ser produzir outra menina inútil? Era ótimo que não tivesse havido outra filha além de Ludmila. A própria Ludmila já era demais, tão faminta que era. Às vezes, quando Babushka começava a falar sobre meninas fracas, meninas más, meninas famintas, Ludmila sentia vontade de machucá-la.
Dois anos atrás, quando Babushka se levantava pela manhã da cama que partilhava com Ludmila, sofrera subitamente uma queda. O pai atravessara correndo a cortina que dividia a cabana. Ludmila estava tão assustada que se pusera a chupar o polegar, coisa que há anos não fazia. Babushka estava de olhos fechados e respirava tão ruidosamente como se estivesse roncando. Quando o pai se ajoelhara ao lado dela e começara a chorar, Ludmila desatara também a chorar.
Mas a avó finalmente abrira os olhos, revirando-os. E mais algum tempo se passara antes que resmungasse:
— Ludmila... Ludmila... ela me empurrou...
Um médico viera examiná-la, para determinar sua remoção para um hospital. Dissera que Babushka sofrera um derrame e nunca mais voltaria a andar. E acrescentara que havia poucos leitos para os vivos, muito menos para os agonizantes. Alegara que não havia razão para transferir Babushka para o hospital. Ela poderia morrer a qualquer momento, de um choque súbito ou simplesmente pelo coração parar. Ou podia sobreviver por muitos anos. Mas era justamente esse o problema. Eles estavam mais preocupados com aqueles que podiam recuperar-se e voltar a produzir.
Ludmila pensara em perguntar: e o que vai acontecer comigo? Os verões já eram terríveis. E se a avó tivesse de ficar na cama, o próximo verão seria ainda mais longo e difícil, com os homens longe de casa.
Dois anos... Um tempo interminável. E jamais ouvira um “obrigado” ou um “por favor” de Babushka. Só fazia gritar e jogar o travesseiro nela. No inverno passado, o pai ficara furioso por causa disso:
— Já chega! Está sendo rude demais com Ludmila. Ela está trabalhando mais do que você poderá voltar a fazê-lo.
Babushka ficara tão ofendida que mal falara durante todo o inverno. E passara a beliscá-la durante a noite, os dedos cruéis encontrando a perna, o braço ou uma orelha de Ludmila. Ela beliscava e beliscava até que Ludmila não conseguia mais aguentar. Empurrava a avó para longe. Mas a velha nunca mais caíra da cama.
Ludmila suspirou e pegou o balde. Abriu a porta e hesitou por um instante, esperando que o travesseiro voasse em sua direção. Mas a avó continuava exatamente como a deixara pela manhã. Com o travesseiro ainda comprimido sobre o seu rosto.
Cuidadosamente, Ludmila largou o balde no chão. Tirou a panela do fogo e serviu sopa em sua tigela. Pegou uma colher e tomou tudo, saboreando lentamente. Depois, sem olhar para a cama, levantou-se e serviu-se do resto da sopa,tomando tudo tranquilamente.