Galeria de Horrores
Ele ri dos
otários que entram sem serem chamados no seu recinto, seu palácio ou seu mundo
de aventuras. Mesmo que tudo ali seja escuro, fétido, frio; onde os ratos o
fazem companhia, e muitas das vezes, suas pequeninas cobaias. Às vezes, quando
a chuva cai sobre o tapete imundo que é o asfalto lá em cima, na cidade, os
bueiros vomitam a água suja e mal-cheirosa no seu reino, só para depois cuspir
tudo no rio Tietê, fazendo tudo subir e inundar partes mais baixas da cidade.
Os intrusos de
hoje são um casal de drogados que resolveram se aventurar na galeria pra poder
fumar uma pedrinha crack mais caprichada que compram a poucos minutos das mãos
de um traficantezinho vacilão de merda da cracolândia. Ele observa os dois se
beijando num canto mais claro de sua galeria e, mais alguns passos, estarão na
penumbra, no breu, na escuridão que os levará para a cama de cirurgia. Ele já
espera por alguém há quinze dias, e seus ratinhos de estimação estão famintos,
pois os últimos alimentos acabaram ontem.
O rapaz retira a
blusa da garota, os seios desnudos balançam no ar. Ele nem se excita vendo a
cena. Em movimentos rápidos, ela faz sexo oral no rapaz, que geme de prazer e
dá uma tragada no cachimbo feito de lata de cerveja, soltando um grito de
prazer e poder, ecoando pela escuridão do reino. Ela se levanta e o puxa pelo
braço, adentrando pela escuridão. Uma luzinha de celular é acesa e o túnel se
enche de um azul espectral, sombrio. Eles vão tropeçando em tudo quanto é tipo
de porcaria, sujeiras trazidas pela última enxurrada. Desenhos pintados nas
paredes por pichadores ganham vida com a luzinha azul. Ela não aguenta mais e o
puxa pra cima dela, deslizam pela parede imunda e se entregam ao prazer.
Ele enxerga tudo
verde com o aparelho de visão noturna que conseguira de um grupo de manutenção
da prefeitura que, sendo ridicularizados pelos outros lá em cima, que não
acreditavam no que eles diziam: um vulto
surgiu do nada e lhes roubou o aparelho. Ele esmaga o celular com o pé e tudo
fica negro. Ela grita e tenta procurar as cegas o aparelho esmigalhado ao seu
lado. O rapaz tenta por as calças no lugar, correndo os olhos esbugalhados para
todos os lados. Ele gosta de ver o corpo
perfeito dela, mas o que ele mais gosta é de ver o rosto assombrado dela, os
olhos arregalados tentando desesperadamente procurar luz, e, ao pegar e sentir
o celular aos pedaços, seu rosto se contorce num esgar horroroso.
Ela grita que
tem alguém lá.
O rapaz se
assusta com a revelação e tenta correr, deixando-a para trás.
Poderosas mãos o segura, como alicates se fechando na carne.
Ele solta um grito ululante, e uma mão com um pano tapa sua respiração. O
cheiro de clorofórmio queima seu nariz e...
E vem o horror
em sua alma.
Enquanto ele é abatido, a garota tenta por suas calças com
toda a rapidez do mundo, o coração aos saltos, transbordando-lhe de terror.
Quanto percebe que tudo ficou em silêncio, sente que alguém está pouco mais de
um metro de distância. Ela grita pelo nome do rapaz, mas não ouve nada a não
ser pela respiração ofegante a poucos metros de si. Seu coração balança no
peito e suas pernas parecem de borracha.
Ele avança sobre
ela como uma bala. A garota solta um grito pavoroso ao sentir as mãos que mais
se parecem como garras assassinas e... O clorofórmio queima-lhe o nariz. O
mundo negro a sua frente não passa de um lugar horrivelmente medonho,
assombroso, enquanto sua vida miserável de drogada passa diante de seus olhos
arregalados.
Ela ouve um
zumbido que mais se assemelha com abelhas zunindo aos seus ouvidos. Logo uma
suave música de violino adentra em seu cérebro e ela resolve abrir os olhos.
Tenta focalizar o teto de reboco cinzento, com uma luminária tendo apenas uma
lâmpada fluorescente acesa. Tenta erguer-se e percebe que seus braços e pernas
estão amarrados.
É aí que tudo
lhe volta à mente. Suas entranhas intumesceram.
Com horror na alma, ela tenta olhar a sua volta. E vê uma
figura medonha, uma figura parecida ter saído de um pesadelo real, muito real e
pavoroso. Veste uma sobrecasaca de médico, imunda, mas é o que era. Nas mãos,
luvas descartáveis sujas de algo indescritível, e um rosto cheio de cicatrizes,
faltando o olho direito. A figura medonha lhe encara e um sorriso sarcástico
deixa á mostra uma boca faltando alguns dentes. Um cheiro de podre impregnado
no ar, mas não um cheiro podre que ela conheça. Ela começa a tremer de pavor ao
vê-lo se aproximar com objetos cirúrgicos numa bandeja de inox suja de sangue
ou algo parecido.
– Ah, você acordou,
enfim – disse a figura medonha, olhando com o único olho que lhe restara na
cara retalhada, a voz é de um tom grave de barítono.
Ela geme de
medo, mas fala:
– Quem é você e
o que quer comigo? Cadê meu amigo? O que fez com ele? Onde eu estou? E...
– Calma... uma
pergunta de cada vez! – responde, e pega um bisturi, olha-o com uma precisão
médica. – Seu amiguinho agora faz parte da minha galeria de artes, afinal de
contas, dei o nome de o covarde foge à
luta, já que ele correu e te deixou lá, sozinha comigo. Bem, você está no
meu reino subterrâneo e quero de você um pouco de companhia, pois moro sozinho
e não sei o que é uma companhia feminina há anos, sabe! – ele dá uma piscadela
com o único olho e observa o corpo nu amarrado à cama de cirurgia... perfeito.
Os cabelos loiros longos, mal cuidados, mas longos e bonitos. O ventre bem
delineado e escultural, as coxas roliças e os cabelos castanhos combinado com
os pelos pubianos, quase marrons. – Me
chamo Dr. Henrique, médico artista-plástico pela USP, turma de 86, belo ano...
– Por favor, não
faça nada comigo, eu imploro! Por favo, por favor, por favor... – ela pediu,
chorando, sentindo um medo abisso.
– Não farei nada
que você não goste... só quero sua companhia para terminar a minha mais nova
obra da arte-plástica, uma opinião! Quer ver só qual é minha obra?! – indaga e
sai.
Ela começa a
pensar na possibilidade de morrer ali, e esse pensamento a faz tremer, e
juraria – e por Deus como ela juraria – que nunca mais iria encher-se de droga,
nem desobedecer a seus paizinhos tão otários que acreditam nela, quando diz ter
parado de usar essas substâncias ilegais. Ouve passos e algo sendo como um
ranger de rodinhas. Ergue a cabeça e vê o louco arrastando algo numa cadeira de
rodas e algo escondido sobre um lençol branco manchado de sangue. Ele se
aproxima da cama e gira uma manivela ao lado da cabeceira. A cama começa a se
dobrar em noventa graus. Ela pode ver tudo com mais clareza, agora. Ele volta
até o misterioso volume atrás do lençol e o tira. A cena a seguir, nem nos
pesadelos mais profundos dela e da alma humana, jamais poderia ser verdade... mas era.
Aquele que
minutos, horas, dias atrás – ela não sabe – deveria ser o namoradinho drogado
dela, estava sem as pernas e estavam costuradas uma em cada lado de suas
costelas, com os calcanhares virados para frente. As mãos, esticadas em direção
a virilha, estavam costuradas no lugar onde havia pênis e testículos, e estes
dois, estavam costurados no centro do peito, murchos e arroxeados.
A garota grita,
mas não foi um grito qualquer, foi um grito gorgolejante e pavoroso, que deve
ter sido ouvido por toda a extensão do local. A figura medonha ri. Ri como um
louco, passando a língua nas brechas dos dentes que lhe faltam na boca podre.
– Ele não ficou
uma beleza?! Os covardes têm que ser vistos assim, sem as pernas e as mãos
presas numa vagina, e não num pênis... eles não devem ter pênis, isso é pra
homens de verdade, que não fogem à luta.
É aí que ela
ouve um gemido comprimido daquilo que um dia foi seu namoradinho e urra de
desespero, fraqueza. Tenta soltar-se dos cordões que a prende.
– Fique calma,
eu não vou fazer isso com você e...
– Você é um
louco! Ele ainda está vivo, não percebeu ainda! – ela berra, alucinada de
horror.
Ele dá três
passos e cola o seu rosto no dela:
– Nunca mais me
chame de louco novamente, sua vaquinha sem vergonha, ou juro que vai sentir meu
bisturi lhe abrindo sua linda xoxota como se ela fosse um pedaço de manteiga,
ouviu bem? – ameaça e se afasta, dando-lhe as costas – Eli Roth e Quentin
Tarantino deviam saber mesmo que existem pessoas como eu quando fizeram juntos
o filme O Albergue, sabe! Realmente
existem pessoas como eu no mundo... e muitas. O mundo não nos compreende, cara!
Somos fantásticos, sabia!
Ela não
respondeu nada, mas sentiu o cheiro que emanava da boca dele, era putrefato e
azedo, nauseante e ardente.
– Eu gosto de
contar meu caso pros mais chegados, sabe! Fui expulso do curso de
artesões-plásticos quase no final... aprendi como deixar uma pessoa paralisada
e viva por muitos anos somente à base de um soro criado por mim. Fui taxado de
lunático e me expulsaram. Desse dia em diante passei a fazer obras de arte com
os corpos dos que invadem meu reino, sabe! Quer ver só como faço isso?!
A garota nem
teve tempo de responder que não, e
ele se prostou trás dela, e, em movimentos rápidos, ergueu sua cabeça, e foi aí
que ela sentiu uma dor insuportável atrás do pescoço. Soltou um urro pavoroso
ao sentir a lâmina do bisturi lhe cortando a carne. Depois, como num passe de
mágica, tudo ficou dormente, e do pescoço pra baixo tudo estava paralisado. Ele
soltou as amarras que lhe prendia e sentou-se ao lado dela, limpou o
instrumento no roupão e sorriu.
– Viu? Esse é o
primeiro passo! Agora você está paralisada do pescoço pra baixo... não sente
mais nada... nadinha, sabia!
A garota não
consegue simplesmente expressar seu horror diante disso, pois sua cabeça parece
estar presa num espeto, pendendo no ar. As lágrimas rolam com abundância, o
rosto contorcido num esgar horrível. A cama inunda-se de sangue.
– ah, não chore,
pois mesmo se eu fizer isso... – disse e foi até um armário e pegou algo.
Voltou e colocou um rato no abdômen dela, um rato grande e marrom, que
perambula por sobre a pele alva e inerte: – Certamente você não sentirá nada –
completou, dando uma risada sinistra.
A garota grita
em desespero, mas não sente nada.
Ele retira o rato, e, num gesto preciso, passa o bisturi na
região do rim, abrindo-lhe um talho de quinze centímetros de cumprimento,
depois mete a mão lá dentro e puxa um rim, que sai jorrando sangue. Tira-o e
mostra pra ela.
– Vê? Você não
sente nada – diz, limpando a superfície jocosa com a mão esquerda.
Ela sente uma
onda em aspiral lhe bombardear a cabeça, com uma onda de choque repentino, e
pontinhos negros surgem diante dos seus olhos, que giram nas órbitas. Geme de
horror e vê o mundo girar...
Sente tapinhas
no rosto e volta a si, mas preferiria morrer ao vê-lo colocando o rim
recém-tirado dentro de sua vagina. Ele olha com excitação para ela, e, num
único movimento com o bisturi, abre-lhe a garganta.
Agora ela sente.
Sente uma dor
fina e dilacerante. Tenta respirar, mas o sangue lhe invade a garganta
fazendo-a tossir. Um punhado de sangue rubro projetou-se para fora,
espalhando-se e tingindo seu corpo nu. Filetes abundantes de sangue escorrem do
nariz. Era insuportável morrer afogada no próprio sangue. Logo tudo fica
dormente, calmo, e a escuridão volta a dominar seus olhos pela última vez, mas
não antes de ouvir, lá no que restou da sua consciência, essas palavras
distorcidas, sarcásticas:
– Estão com
fome, meus amiguinhos...
FIM.