sábado, 29 de abril de 2017

Ludmila


Geralmente a avó começava a gritar-lhe no instante em que a porta se abria, indagando por que Ludmila se demorara no bosque ou se, por acaso, se comportara mal na escola e por isso fora castigada. Havia ocasiões em que a avó nem mesmo isso dizia, arremessando o travesseiro contra Ludmila, sempre preparada para pular de lado. Mas naquele dia foi diferente. Nenhum travesseiro foi-lhe arremessado. E também não houve gritos.

— Babushka?

Arriscando um olhar para a avó, Ludmila viu as trancas brancas espalhadas sobre o travesseiro e a coberta puxada para o alto, como a arrumara algumas horas antes. Teve vontade de dizer: “Perdoe-me pelo que fiz esta manhã, Babushka. Não queria ser uma menina má. Por favor, perdoe-me e diga alguma coisa. Por favor...”

Se a avó não falasse agora, passaria dias e dias sem dizer coisa alguma. Nem uma única palavra. Talvez só voltasse a falar depois que a neve começasse a cair e o pai e irmãos de Ludmila tivessem voltado da colheita.



Cuidadosamente, para não acordar a avó, Ludmila arrumou os rabanetes e o repolho sobre a mesa, juntamente com uma preciosa fatia de porco salgado. E depois foi pôr lenha no fogo. Babushka vivia-se queixando de estar com frio, mesmo no tempo mais quente. A cada dia, Ludmila tinha que descrever círculos maiores pelo bosque, a fim de pegar lenha. Na primavera seguinte, pediria ao pai e irmãos para deixarem uma pilha maior de lenha, antes de partirem para a colheita no início do verão. Se Babushka quisera a cabana mais quente naquele verão do que no anterior, certamente haveria de querê-la ainda mais quente no verão seguinte.

Mas, por outro lado, Ludmila já estaria então com 13 anos e seria capaz de cortar alguma lenha. Ou pelo menos os galhos mais baixos dos pinheiros e bétulas em torno da clareira. Se pudesse fazê-lo, os homens teriam o tempo necessário para escavar o poço que algum dia levaria água para dentro da cabana. Ou talvez pudessem fazer um cercado em torno da horta, a fim de que os coelhos e veados não roubassem tudo o que plantavam, como vinha acontecendo. E agora quase não havia comida para o inverno que se avizinhava. O simples pensamento deixou-a mais faminta do que o habitual. E quase já não havia rublos em casa, até que o pai voltasse.

Evitando olhar para a avó, que detestava ser surpreendida dormindo, Ludmila fritou o porco, descascou os rabanetes e cortou o repolho, pondo tudo para cozinhar no fogo, com o resto de água que ainda estava no balde. Pôs o xale e saiu de novo, atravessando a clareira na direção do riacho que corria ruidosamente sobre as pedras, quase como uma balalaica de Shura.

Se ficasse fora de casa por mais algum tempo, Babushka continuaria a dormir e haveria menos tempo para que se queixasse. De qualquer forma, era melhor ficar ali fora, pensando e contemplando as moitas e as árvores. E o cheiro era também melhor. O cheiro no interior da cabana era simplesmente horrível.

Ao voltar para casa, fingiria que acabara de chegar da escola e do armazém. A avó, como sempre, poderia gritar ou jogar-lhe o travesseiro. Depois, tomariam a sopa e iriam dormir. Dentro de alguns dias, talvez uma semana, o pai e os irmãos estariam de novo em casa. Babushka ficava mais calma sempre que eles estavam em casa. Mas era como o pai dissera, na primavera anterior:

— Se você tivesse que ficar na cama com as pernas paralíticas, minha querida Ludmila, também estaria rabugenta e implicante.

Se o pai o dissera, então era assim mesmo. Afinal, ele não era o melhor pai que existia no mundo? Ajudava-a nos deveres de casa e sempre aparecia na escola nos dias mais escuros do inverno, no momento em que Ludmila se preparava para iniciar a longa e solitária viagem de volta a casa, através dos bosques. O Camarada Varvara, o mestre-escola, dizia que cada pessoa devia produzir de acordo com sua capacidade e colher de acordo com suas necessidades. Mas a avó comia sem produzir qualquer alimento. O pai dizia que, na idade dela, isso era natural; no passado, a avó já produzira muito.

Naquele verão, quando os passarinhos e outros animais vinham devorar a horta, quando não havia forragem para alimentar o gado e os carneiros, quando não havia o que dar aos porcos e galinhas, estavam presentes todos os indícios de que os lobos voltariam a aparecer no próximo inverno, segundo o velho Nikolai, do armazém. Há três anos que ninguém da aldeia via um lobo. Mas todos sabiam que, quando as pessoas morriam de fome, os lobos sempre apareciam.

Ludmila jamais vira um lobo, mas já os ouvira uivando. E com bastante frequência. Babushka sempre dizendo que as meninas más só serviam mesmo para alimentar animais selvagens.
Ah, seria maravilhoso quando o pai e os sete irmãos voltassem! Provavelmente ainda naquela semana, dissera o velho Nikolai, sacudindo a cabeça tristemente, porque um retorno prematuro significava uma má colheita e menos comida para todos. De qualquer maneira, o pai manteria os lobos longe da cabana, como sempre o fizera antes.

Assim que todos estivessem em casa, não mais haveria as manhãs escuras e solitárias, quando Ludmila tinha que se levantar da cama em que dormia com a avó, quebrar o gelo no balde com água e cozinhar a kasha, depois de ajudar Babushka com o penico.

Havia ocasiões em que a avó reclamava tanto e a retardava de tal forma que Ludmila tinha de correr pelo bosque até a estrada e daí até a aldeia, mesmo assim chegando atrasada à sala comunal onde funcionava a escola. O Camarada Varvara sempre a castigava com deveres de casa extras, a serem feitos à luz de vela. Se a avó pelo menos pudesse produzir velas ou não demorasse tanto no penico...

E lá estava a primeira estrela. Outras despontaram um instante depois, brilhando cada vez mais intensamente, apesar da lua já estar subindo pelo ar, que naquela noite estava tão amarela quanto as bétulas durante o dia. Uma noite maravilhosa, impregnada pelos sussurros que vinham do bosque.

No ano passado, o pai e os irmãos tinham chegado um mês depois, cantando ruidosamente, vindos da aldeia, onde os caminhões tinham-nos deixado. Haviam saído correndo ao verem-na acenar, disputando para ver quem a alcançaria primeiro. Quem quer que o conseguisse, imediatamente a levantava nos braços e quase a sufocava de apertos e beijos, demorando bastante antes de largá-la para o seguinte na fila. Mas nenhum deles jamais corria para beijar a avó.

Seria ótimo se eles voltassem mais cedo este ano, como o velho Nikolai afirmava que iria acontecer. Mas seria triste por causa das pessoas que iriam morrer de fome naquele inverno, talvez até algumas de sua própria comuna.

Qual das pessoas de sua família poderia morrer?

Não o pai, que era forte e saudável. Não os irmãos, porque eram jovens e fortes. Não Babushka, que não era jovem nem saudável, mas era a mais forte de todos. Era o que o pai estava sempre dizendo. Cada vez que Babushka lhe perguntava:

— Quem é o mais forte de todos nós?

— E você, querida mãezinha.

Babushka sacudia a cabeça e sorria, mostrando as gengivas encolhidas. Os sete meninos e Ludmila riam e aclamavam. Porque o pai sempre se postava num lugar em que Babushka não podia vê-lo e piscava alegremente, para indicar o que realmente pensava.

Mas com todos eles tão fortes, restava apenas uma pessoa que era fraca. Uma menina má, que não podia cortar lenha, que ficava irritada quando Babushka se demorava no penico todas as manhas, que detestava trazer-lhe água para que se lavasse, que não gostava de arrumar a cama e ajeitar o travesseiro sob as trancas brancas.

Pobre Babushka... Era fácil demais odiá-la, era difícil recordar que estava velha e aleijada. Mas como alguém poderia amá-la, se cheirava tão mal e gritava tanto? Naquela manhã, quando Ludmila já estava atrasada para a escola, Babushka arremessara-lhe o travesseiro, alegando que estava duro. Ludmila desatara a chorar. Jogara o travesseiro contra a avó, vendo-o cair sobre o rosto encarquilhado. Minutos depois estava correndo a caminho da escola, o mais depressa que podia, chorando sem parar.

Mais estrelas. Ao luar, as sombras iam ficando cada vez mais difusas e compridas. Ludmila afastou-se do córrego e atravessou a clareira até a porta da cabana. Sentou-se no balde virado ao contrário, sem querer entrar.

Um grito ou um travesseiro em sua cara? Uma queixa ou uma exigência? O que aconteceria se reagisse ao grito? Ou se tornasse a jogar o travesseiro em Babushka? E se ela não entrasse, ficando ali fora, à espera do pai e dos irmãos?

Quando eles chegassem Ludmila gostaria mesmo de ficar dentro de casa. A cabana estaria então ressoando de conversas e risadas. E de noite
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ouviria o violino de Oleg e a balalaica de Shura, sob o acompanhamento das palmas ritmadas do pai. Rodio, Vukuly e Kyril dançariam um gopak. E depois Ludmila valsaria com todos eles, contando cuidadosamente para que não brigassem para decidir quem seria o próximo. Não havia música e dança todas as noites, porque, uma vez por semana, os homens iam até a aldeia, para beber cerveja e conversar com os amigos.

Se ela morresse de fome naquele inverno, com quem eles iriam dançar? Ludmila assoou o nariz com a ponta do xale. Morrer talvez não fosse tão ruim assim. No céu, ela descobriria pessoalmente como a mãe era. É verdade que o Camarada Varvara dissera que não existia o paraíso. Ela contara a história ao pai, que comentara:

— É bem possível. Mas, seja como for, sua mãe era um anjo.

Só que o pai não conseguia recordar-se se ela era grande ou pequena, feia ou bonita. Sabia apenas que tinha sido a mulher certa para ele e jamais descobrira outra igual.

Babushka dizia que nenhuma mulher, muito menos a segunda esposa do filho, merecia tal devoção. Além do mais, ele não precisava de uma segunda esposa, já tendo sete filhos homens. O que a segunda esposa poderia fazer a não ser produzir outra menina inútil? Era ótimo que não tivesse havido outra filha além de Ludmila. A própria Ludmila já era demais, tão faminta que era. Às vezes, quando Babushka começava a falar sobre meninas fracas, meninas más, meninas famintas, Ludmila sentia vontade de machucá-la.

Dois anos atrás, quando Babushka se levantava pela manhã da cama que partilhava com Ludmila, sofrera subitamente uma queda. O pai atravessara correndo a cortina que dividia a cabana. Ludmila estava tão assustada que se pusera a chupar o polegar, coisa que há anos não fazia. Babushka estava de olhos fechados e respirava tão ruidosamente como se estivesse roncando. Quando o pai se ajoelhara ao lado dela e começara a chorar, Ludmila desatara também a chorar.

Mas a avó finalmente abrira os olhos, revirando-os. E mais algum tempo se passara antes que resmungasse:

— Ludmila... Ludmila... ela me empurrou...

Um médico viera examiná-la, para determinar sua remoção para um hospital. Dissera que Babushka sofrera um derrame e nunca mais voltaria a andar. E acrescentara que havia poucos leitos para os vivos, muito menos para os agonizantes. Alegara que não havia razão para transferir Babushka para o hospital. Ela poderia morrer a qualquer momento, de um choque súbito ou simplesmente pelo coração parar. Ou podia sobreviver por muitos anos. Mas era justamente esse o problema. Eles estavam mais preocupados com aqueles que podiam recuperar-se e voltar a produzir.

Ludmila pensara em perguntar: e o que vai acontecer comigo? Os verões já eram terríveis. E se a avó tivesse de ficar na cama, o próximo verão seria ainda mais longo e difícil, com os homens longe de casa.

Dois anos... Um tempo interminável. E jamais ouvira um “obrigado” ou um “por favor” de Babushka. Só fazia gritar e jogar o travesseiro nela. No inverno passado, o pai ficara furioso por causa disso:

— Já chega! Está sendo rude demais com Ludmila. Ela está trabalhando mais do que você poderá voltar a fazê-lo.

Babushka ficara tão ofendida que mal falara durante todo o inverno. E passara a beliscá-la durante a noite, os dedos cruéis encontrando a perna, o braço ou uma orelha de Ludmila. Ela beliscava e beliscava até que Ludmila não conseguia mais aguentar. Empurrava a avó para longe. Mas a velha nunca mais caíra da cama.

Ludmila suspirou e pegou o balde. Abriu a porta e hesitou por um instante, esperando que o travesseiro voasse em sua direção. Mas a avó continuava exatamente como a deixara pela manhã. Com o travesseiro ainda comprimido sobre o seu rosto.

Cuidadosamente, Ludmila largou o balde no chão. Tirou a panela do fogo e serviu sopa em sua tigela. Pegou uma colher e tomou tudo, saboreando lentamente. Depois, sem olhar para a cama, levantou-se e serviu-se do resto da sopa,tomando tudo tranquilamente.

Quando Os Anjos Não Querem Voar




Quando desliguei o telefone, a minha vontade era apenas de chorar. Chorar como se minhas lágrimas pudessem lavar minha alma, meus pecados, minha tristeza. Chorar como se o próprio Deus tivesse me pedido para afogar de novo o mundo sob um dilúvio, desta vez proveniente de minhas lágrimas.

Quem estava do outro lado da linha era meu pai. Ele é zelador em um colégio de ricaços aqui em São Paulo. Graças a isso, eu e meu irmão tivemos educação de primeira classe quase que a custo zero. Ele havia ligado porque haviam problemas na escola, onde continuava trabalhando, mesmo depois de aposentado.

O problema todo tinha a ver com pessoas que eu conhecia. Dona Lucinda havia sido minha professora de educação artística. Foi uma das professoras que mais me influenciou pela vida toda, um ser humano fantástico. Só tinha um probleminha: fumava feito uma chaminé. Fora isso, e muito mais importante que isso, era um ser humano maravilhoso.


Fiz aula junto com a filha dela, Luísa. No segundo grau, ela foi uma das grandes paixões não correspondidas da minha vida. Vinda de uma classe muito mais abastada que a minha, acabei caindo no papel de pobrezinho bom para amigo, mas jamais bom o suficiente para namorado. Papel que, aliás, eu vivia interpretando enquanto estudei naquela escola. Fazer o quê? Felizmente, é um tempo que ficou para trás. Luísa, por sua vez, formou-se em Letras e foi dar aulas de Português e Inglês na escola onde sua mãe havia trabalhado e nós havíamos estudado juntos.

Lembro perfeitamente de quando Dona Lucinda morreu. Câncer de pulmão. Óbvio como dois mais dois serem quatro. Lutou muito, lutou até o último minuto. Mas há uma hora em que todos temos de ir.

Numa determinada hora do velório, lembro de ter saído para tomar um ar fresco e visto Luísa caminhando entre os túmulos, absorta em seus pensamentos, com um cigarro na mão. Apesar de odiar cigarro, normalmente não fico enchendo o saco de fumante, a menos que a fumaça esteja me incomodando. Mas, naquele dia, naquela situação, eu não consegui me conter:

- Já não é suficiente esta porcaria ter levado uma pessoa da sua família?

Ela me respondeu apenas:

- Fácil criticar. O vício não é seu...

Pouco tempo depois, Luísa morreu num incêndio, adivinhem só, provocado pelo cigarro que estava em sua mão quando ela adormeceu, bêbada. O divórcio com seu príncipe encantado acabara com os nervos dela. E a única coisa boa que resultou deste casamento foi uma menina linda chamada Maria Helena, para quem nunca consegui olhar sem pensar que ela deveria ter sido minha filha.

E era este mesmo o motivo da minha enorme vontade de chorar. Meu pai havia dito apenas uma frase ao telefone:

- Euller, a Maria Helena está com problemas. Ela precisa de você.



xxxx



Foi fácil encontrá-la. Terminei de subir a escada e virei à direita, na direção das salas de aula. Ela estava no ateliê das aulas de educação artística. Sentada no chão, entre papéis e giz de cera, desenhando. Eu procurei me aproximar com cuidado, não queria que ela se assustasse. Ao meu lado, o professor de educação artística, Professor Mazuka – do qual todos davam risada por ser talvez o único japonês no mundo a se chamar Sebastião. Sebastião Mazuka.

Eu estava apreensivo. Já é complicado quando se trata de adultos, fica pior ainda quando envolve crianças. Especialmente crianças que conhecemos e amamos. Mazuka, por sua vez, não conseguia disfarçar seu nervosismo. Eu entendia perfeitamente. Naquele momento ele era alguém que estava se sentindo fora de seu território, inseguro e se sentindo desafiado. E não podia fazer o que fazia habitualmente, se refugiar na sua autoridade de professor.

Chamei por ela com a maior suavidade que pude colocar em minha voz.

- Maria Helena?

Ela não virou o rosto em minha direção. Estava ocupada, desenhando. Apenas sorriu. E sorriso de criança é assim: um mais lindo que o outro. Aquilo doeu em meu coração.

 - Oi, Euller!

Eu não sabia o que dizer. Felizmente, ela mesma acabou quebrando o silêncio.

- Euller, por que o professor Mazuka nunca deu dez em desenho pra ninguém da minha classe?

Desta vez, eu sorri. Eu sabia a resposta para aquela pergunta. Mas achei que Mazuka precisava participar da conversa também.

- Então, professor Mazuka, por que você nunca deu dez para ninguém da sala da Maria Helena?

Mazuka estava realmente incomodado. E quase se precipitou.

- Ela...

Fui rápido em interrompê-lo.

- Professor Mazuka, não seja indelicado. Apenas responda a pergunta, sim?

Não me preocupei em ser gentil com ele porque já havíamos conversado antes. E ele quase estragara o que havíamos combinado.

- Sim, c,c, claro - gaguejou Mazuka - Desculpe... ahn, é que eu percebi que, quando eu dava dez nos desenhos, as crianças acabavam se acomodando depois. E não criavam mais como poderiam criar, entende?

Sorri de novo para ela.

- Está explicado?

Ela fez que sim, balançando a cabeça. Seus longos cabelos castanhos balançaram de maneira desajeitada.

- Euller, você quer desenhar comigo?

- Claro, Maria Helena! - Eu não queria que a situação se prolongasse, mas contrariá-la não ia ajudar em nada - O que eu devo desenhar?

- O que você quiser.

Apanhei papel e giz de cera. Mazuka fez menção de falar, mas fiz sinal para que silenciasse. Ele se calou a contragosto. Eu entendia o seu incômodo. Mas eu falaria com ele depois. Havia questões muito mais importantes em jogo no momento.

Sentei-me em uma das carteiras e comecei a desenhar, sem tirar os olhos dela. Mas também procurei caprichar no desenho. Nada ali poderia dar errado.

- Maria Helena, o que você acha do meu desenho? - coloquei o papel no chão, ao lado do desenho dela.

Ela olhou com um ar bastante crítico. Eu não pude deixar de sorrir, eu conhecia aquele ar de superioridade, como se o desenhista fosse um espécime inferior e que estivesse prestes a ser guardado num frasco ou jogado no lixo. Mazuka fazia isso com todos os alunos. Era muito ruim. Não era à toa que ela tinha tantas divergências com ele. Ele não era mau. Mas era uma pessoa difícil de se lidar, especialmente para uma criança vinda de um lar onde o conto de fadas acabara de falir.

- Eu achei seu desenho muito bom, Euller. Eu acho que você merece dez. O professor Mazuka concorda?

- Professor Mazuca, Helena acha que meu desenho merece um dez. O que você acha?

Ele fez o que sempre fazia. Levantou os óculos, fez aquela expressão desagradável e deu seu veredicto:

- Eu concordo com ela. Você se saiu muito bem. E ela fez uma excelente avaliação.

Cortei Mazuca antes que ele estragasse tudo, pecando agora pelo exagero.

- Obrigado, Professor Mazuka. Foi muito gentil de sua parte.

E, voltando-me mais uma vez para Maria Helena:

- Você não está cansada, querida? Não quer ir descansar?

Ela acenou que sim, com a cabeça.

- Mas antes quero terminar uma coisa.

Estendendo-se até onde estava meu desenho, ela escreveu algo nele com seu giz de cera. Depois levantou-se e, batendo a poeira do uniforme, ela finalmente virou-se de frente para mim. Pude então ver o outro lado de sua face, destruído pelo fogo.

Foi uma das poucas vezes que fiquei feliz por ter a experiência que tenho nestes assuntos. Apesar da visão da face desfigurada ter mexido comigo, pude disfarçar meu incômodo. Ela não precisava tomar consciência daquilo. Tampouco iria contar aquele detalhe para Mazuka. A cabeça dele já estava a mil com toda aquela situação.

- Bom, então eu vou indo, Euller. Estou tão cansada...

- Sim, querida, vá tranquila. Está tudo bem. Pode ir descansar agora. - Queria abraçá-la, beijá-la, dizer que eu queria muito ter sido pai dela e que eu ia sentir muitas, mas muitas saudades mesmo. Mas me limitei a sorrir. Eu não queria que nada lhe prendesse aqui, neste mundo, agora que ela já não pertencia mais a ele.

Ela fez um tchauzinho para mim, virou-se e seguiu andando em direção ao fundo da sala. Antes de chegar à parede, ela desapareceu.



xxxx



A copa estava vazia, afinal todos os professores tinham iniciado suas aulas naquele momento. Então eu e Mazuka podíamos conversar à vontade, sem precisar nos preocupar com ninguém, pelo menos pelos próximos quarenta e cinco minutos.

- Euller, você pode me explicar o que é toda esta confusão onde acabei me metendo?

- Embora pareça absurdo, é relativamente simples. - Minha vontade era aproveitar o momento para dar um sermão em Mazuka, porque eu também nunca havia gostado da pose que ele fazia e do modo pedante como tratava os alunos. Mas sabia que ele fazia tudo isso porque era tímido e inseguro. Tratar-lhe com dureza não o ajudaria a aprender nada com aquela situação.

Ajeitando meus óculos, continuei minha explicação:

- Maria Helena admirava muito você. Ela sempre foi uma excelente desenhista, você sabe disso. E admirava você, não apenas por sua habilidade em desenho, mas também por ser capaz de ensinar as pessoas a desenhar.

- Nunca percebi isso...

Acabei sentindo pena do pobre coitado. Tinha um talento enorme para desenho, pintura e design, mas era um zero à esquerda quando se tratava de pessoas.

- Mas é verdade. Ela me disse isso várias vezes, quando ainda era viva. Então, quando cheguei aqui e meu pai disse que algumas das suas alunas começaram a gritar no meio de sua aula que estavam vendo o fantasma dela, eu logo entendi o que estava acontecendo. Ela queria resolver suas diferenças com você antes de partir. Morrer pode ser uma coisa confusa, ainda mais quando se é criança e se parte de uma forma tão violenta assim, como no incêndio que vitimou Maria Helena

- O que foi que você viu lá em cima? Ela estava realmente lá?

Percebi onde ele estava querendo chegar:

- Você realmente não está acreditando em nada disso, não é?

Ele respirou fundo. E foi sincero:

- Não. Aceitei você aqui porque seu pai, a quem todo mundo admira nesta escola, me disse que você podia ajudar estas pobres meninas histéricas. Mas não achei que você ia acabar me fazendo passar por essa encenação, de ficar falando com o ar, como se fôssemos duas crianças brincando de faz de conta.

- Eu entendo. Mas há algo que você deveria ver, antes de chegar a qualquer conclusão.

E entreguei para ele o desenho que eu havia feito lá no ateliê de artes, quando conversamos com Maria Helena.

Quando ele olhou para o desenho, pude observar a surpresa em seu rosto. Ele estava estupefato. Afinal, escrito com giz de cera no canto inferior direito da página, estava escrito "Dez! Meus parabéns!" E ele conhecia bem aquela letra, sabia que pertencia a Maria Helena.

- Meu Deus, esse seu dom deve ser horrível, né? Ficar falando com os mortos....

- Existem raras vezes em que vale a pena. Esta foi uma delas. Bom, até logo, professor.

- Até logo e obrigado, Euller.

Deixei Mazuka na copa e fui até um banheiro que ficava nos fundos da oficina de manutenção, o pequeno império de meu pai dentro daquela escola. Fui lá porque sabia que ali eu não seria incomodado. Tranquei a porta e finalmente me permiti chorar.

Chorei como se minhas lágrimas pudessem lavar minha alma, meus pecados, minha tristeza. Chorei como se o próprio Deus tivesse me pedido para afogar de novo o mundo sob um dilúvio, desta vez proveniente de minhas lágrimas.

fonte: http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/09/quando-os-anjos-nao-querem-voar.htm

Os Vivos e os Mortos


Estava atrasado!

Quando cheguei ao velório, o primeiro fato que me chamou a atenção dizia respeito a presença de Helena, sentada e prostrada ao abandono no canto mais discreto da capela. Levei algum tempo até perceber que ela encontrava-se alheia ao que ocorria ao seu redor. A falta de percepção para aceitar o óbvio se constituía em uma das duas perspectivas sempre presentes naquelas ocasiões especialmente fúnebres: havia os que encontravam-se mortos, e sabiam disso, mas recusavam a partida derradeira por pendências pessoais mal resolvidas. Havia os que estando mortos, não se davam conta desta condição.

Helena, infelizmente, encontrava-se na segunda perspectiva: ela não sabia que estava morta!


No velório havia dois caixões: o dela e do marido. O acidente de carro que vitimara os dois acontecera bem próximo da casa deles naquela noite chuvosa. Ninguém soube exatamente como aconteceu a tragédia, mas por conta de um celular ligado dentro do veículo dizia-se, a boca pequena, que Vanderlei, o marido, estava transtornado com ela. Descobrira que Helena o estava traindo há bastante tempo. O casal discutiu muito. Trocaram xingamentos e acusações, que resvalaram inevitavelmente para a agressão física. Ele perdeu o volante na tentativa de aplicar uns bons sopapos nela. E deu no que deu: o carro saiu da estrada e acabou se chocando com um enorme muro de pedras maciças que ficava a um quarteirão dali.

De minha parte, acreditava piamente na hipótese da discussão no carro porque Vanderlei, o marido de Helena, era meu primo. Já o conhecia há muito para saber que ele tinha um temperamento instável. Tratava-se de uma pessoa violenta e arredia. Não entendia como Helena, uma mulher tão distinta, tão educada, fora contrair matrimônio com um troglodita daqueles. Custava-me crer que fosse apenas o dinheiro.

Minha família encontrava-se naquele pequeno santuário para o último adeus ao casal. Minhas tias, primos, sobrinhos, meus pais e todos os amigos de Vanderlei rodeavam os caixões. E Helena, a pobrezinha, sentada no canto da capela ainda não havia se dado conta por que ninguém, até então, viera-lhe oferecer as condolências. Talvez achasse que apenas Vanderlei tivesse morrido, ela não.

O dom de ver e falar com os mortos já se manifestava em mim desde pequeno. No início foi muito difícil lidar com a situação. Passei por dificuldades psicológicas extremamente estressantes que, creiam-me, quase me levaram à loucura. Não tive uma infância decente. Nem eu mesmo, às vezes, consigo acreditar como superei tudo sozinho. Mal saído da adolescência já havia perdido as contas do número de defuntos encontrados vagando nas ruas sem saber que tinham morrido. Adquiri o hábito de ajudá-los a realizar, como gostava de dizer, o “passamento derradeiro”. Confortava-me saber que, ao menos, esta qualidade inata tinha lá a sua serventia.

E, naquele momento, precisava ajudar Helena, a mulher com quem vivi uma relação amorosa intensa. Um relacionamento secreto que, descoberto, causara-lhe o infortúnio de morrer tão jovem. Um desperdício.

Apesar de morta, e não sabê-lo, a criatura continuava linda. Fui até ela decidido a não deixá-la mais acorrentada ao limbo incerto dos que ficam entre os vivos. Cheguei de manso e de fala baixa.

— Helena, minha querida.

— Oh, Alberto – disse ela levantando-se da cadeira assustada – o que está acontecendo? Ninguém quer falar comigo. Eles estão me ignorando. Não respeitam a minha dor! O que está acontecendo?

— Você já foi ver o Vanderlei?

— Claro que não! Eu... bem... não tenho coragem de olhar. Alberto, ele descobriu tudo sobre nós. Tudo! – Ela disse baixinho, como se alguém na igrejinha lhe pudesse ouvir.

— Helena, minha querida. – Disse-lhe sem me aproximar apontando o queixo para os caixões. - Você precisa ser forte e ir até lá.

— Oh, Alberto, eu não tenho coragem de olhar.

— Amor – falei no tom mais suave que me foi possível – você ainda não percebeu que há dois caixões sendo velados aqui na capela?

Ela olhou na direção do amontoado de pessoas em torno dos caixões, levantou as sobrancelhas levemente em tom de curiosidade, e voltou-se novamente para mim.

— Pode ser qualquer um – deu de ombros – afinal esta capela é para isso mesmo: velar os mortos.

Ia ser mais difícil do que eu pensei. Pobre Helena.

— Querida, observe que todos os membros da nossa família estão ao redor dos “dois” caixões! – Disse enfaticamente.

Ela se voltou, novamente, na direção do amontoado de parentes aflitos. Os olhos se inflaram de surpresa. As linhas da testa se contraíram rapidamente. O interesse tornou-se evidente. Deus três passos à frente ficando ao meu lado.

— Alberto, quem morreu, além do Vanderlei? – ela perguntou sem rodeios.

— Helena, meu amor.

— Quem?

Não tive outra opção.

— Você.

Ela se virou e me encarou buscando a verdade nos meus olhos. Não os desviei um centímetro sequer para não lhe oferecer falsas esperanças. No fundo, no fundo, talvez já soubesse. Sei lá. Não tive coragem de dizer mais nada. A conversa foi rápida. A conversa foi seca. Não esperava que fosse assim. Ela tomou a decisão. Passou por mim, na verdade, sua áurea perfeita me transpassou e seguiu na direção dos caixões. A única coisa que pude dizer enquanto ela ia para o seu destino foi “adeus”. Eu sabia o que ia acontecer. Já presenciara o fenômeno centenas de vezes. Quando Helena visse o seu próprio corpo dentro do esquife envernizado, aí sim, o “passamento derradeiro” fecharia o ciclo de vez e a sua presença seria levada à eternidade.

Helena, ao chegar diante de seu próprio caixão, levou as duas mãos à boca. Não gritou. Não fez escândalo. Virou-se, de súbito, para mim. Pude ver, pela última vez, o seu rosto assustado, irradiando aquele brilho intenso que, eu sabia, iria tomar-lhe o corpo todo. Ela flutuou por alguns centímetros. Foi a cena mais bela que já vi. Parecia um anjo sem asas! Como era de costume, aos que iniciam a passagem final, olhou para as próprias mãos. Eu nunca soube bem a razão, mas era a partir das mãos que o processo começava. E foi a partir das mãos de Helena que o brilho lhe tomou conta, ofuscando tudo ao seu redor, como uma janela em quarto escuro que se abre para os raios do sol a pino. Não se podia mais divisar o seu belo corpo. A luz se intensificou no seu máximo e sumiu abruptamente levando-a para sempre. Simples assim.

— Adeus, meu amor – disse não conseguindo deter uma lágrima que me escorreu pelo rosto.

Estava exausto. Então, sentei-me na cadeira.

Deixe-me ficar, naquele assento duro, a ruminar pensamentos de quando nos amávamos intensamente. Um riso fraco me escapou dos lábios ao lembrar-me dela. As raras oportunidades que tínhamos, investíamos sempre em um amor urgente. Um querer apressado. Tínhamos fome um do outro. Nunca a esquecerei. Helena. Nunca! Você sempre será...

— Alberto, seu desgraçado, traidor. Vou matá-lo com as minhas próprias mãos.

Pulei da cadeira feito uma mola. Havia esquecido completamente do Vanderlei! De fato, não o vira perambulando por ali. Outra pobre criatura que, decerto, desconhecia sua condição de falecimento. Não sei qual a razão, mas algo me dizia que Vanderlei sabia, sim, que estava morto, porém recusava-se a ir embora. Tinha uma pendência ainda por resolver e tal pendência era comigo! Os mortos que exigem vingança são os mais complicados de realizar a passagem derradeira. Podem ficar anos vagando dentro das casas, fazendo barulho, arrastando objetos, atrasando as vidas dos que considera culpados de sua desgraça. São muito mais difíceis de convencer a seguir o seu destino.

Fiquei de pé num piscar de olhos, resignado, em enfrentar a vergonha de ser escorraçado por um defunto, porque fisicamente, ele nada podia fazer contra mim.

Tudo aconteceu muito rápido. Vanderlei entrara atabalhoadamente dentro da capela. Ele estava com o braço esquerdo inteiramente enfaixado com gases. O rosto, bem machucado, trazia os minúsculos cortes dos vidros estilhaçados do para-brisa e mancava exageradamente em uma das pernas. Preparei-me para o confronto.

No entanto, ele não veio em minha direção!

Vanderlei partiu como uma fera acuada direto para os caixões, empurrando as pessoas que lhe queriam confortar a dor de sua perda e, usando o ombro ileso, num ímpeto de fúria, empurrou os dois ataúdes fúnebres com toda a força que lhe permitia o seu estado debilitado. Os dois esquifes caíram de lado e espatifaram-se no piso de mármore. Deu-se um barulho estrondoso de madeira rachando que vibrou até os candelabros de velas dependurados no teto da capela. Meus tios horrorizados caíram-lhe em cima para dominá-lo. Minhas tias gritavam e choravam histericamente. Mamãe, coitada, desmaiou caindo por cima de toda aquela bagunça. Um verdadeiro escândalo. Num dos caixões notei o cabelo de Helena aparecer na sua lateral, no outro, o impacto da queda havia expelido o seu conteúdo para fora: Aí, eu vi o outro morto estatelado no chão!

Pasmem, era eu.

Sim, era eu mesmo.

Morto! Eu estava morto!

A imagem do meu corpo me atingiu em cheio. Estremeci dos pés à cabeça. Pisquei diversas vezes, não porque quisesse enxergar melhor, mas porque fora acometido, de súbito, por um fluxo intenso de lembranças. Flashes de imagens entrecortavam-se me trazendo à memória as últimas oito horas de esquecimento. Algo como um filme passou em frente de mim em rotação acelerada. Helena chorando ao telefone. Helena me dizendo que Vanderlei descobrira toda a verdade. Helena dizendo que ele ia matá-la. Eu saindo de casa, bem apavorado, armado de revólver, em meio à noite chuvosa. Eu correndo pela rua em direção à casa deles. O carro deles aparecendo na curva em desabalada carreira. O carro deles vindo em minha direção. O rosto de Vanderlei retorcido de ódio atrás do para-brisa. Helena tentando tomar o volante do lunático. Levantei a arma e atirei. Acertei na cabeça dela, sem querer! Os faróis do carro me engolindo foi a última coisa que vi no mundo terreno.

O fim!

— Os desgraçados eram amantes! Eles eram amantes! Eles eram...

Os gritos de Vanderlei, aos poucos, iam ficando cada vez mais distantes. Estranhamente a paz me invadiu. Senti uma leveza em mim que nunca havia sentido antes. Olhei para as minhas mãos porque eram através delas que se iniciava o “passamento derradeiro”.

E elas começaram a brilhar!

Fonte: http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/10/os-vivos-e-os-mortos.html