sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

A revolta do abate



O ano de 2145 vai ficar para a história, especialmente o dia 25 de outubro. Foi nessa segunda-feira que os homens se revoltaram contra a criação de seres vivos para abate e alimentação. Currais foram incendiados, celas e clausuras destruídas e milhares de pessoas nas ruas atacando consumidores e funcionários da WHR alimentos. O sentimento de liberdade toma as ruas da América. Pessoas se abraçam e choram comemorando mais uma vitória do ser humano contra o assassinato para alimentação. Poderia esse ser o início de uma era, ou simplesmente o fim do mundo. Mas para entender melhor o motivo de tanta comemoração precisamos voltar no tempo, em um tempo onde só havia 10 bilhões de pessoas na Terra.

No ano de 2050 o mundo passou por uma crise mundial sem precedentes. Não estávamos mais conseguindo alimentar todas as pessoas do planeta. Milhares passavam fome, guerras na África dizimaram milhares por água enquanto países como Brasil e China encabeçavam a lista como os maiores produtores de gado para consumo no mundo. Acreditava-se que um boi chinês bebia mais água durante um dia de sua curta vida do que um homem afegão durante uma semana.

Nesse mesmo ano a ONU resolveu tomar atitudes para diminuir o consumo de carne e estimular o consumo de alimentos de origem vegetal, que é muito mais barato e tem um melhor aproveitamento de área e solo. Grandes países como Estados Unidos e Índia davam benefícios a países que eliminassem ou diminuíssem a criação de animais para consumo. E por mais absurda que a idéia possa ser, os grandes produtores de gado aderiram a ação e reduziam a cada ano 3% do seu rebanho. O objetivo era ter somente 5% da criação de gado de corte no mundo, o que tornaria o consumo caro e restrito a uma elite.

Em meados de novembro de 2062 uma fusão empresarial mudaria a história do mundo. Dois grupos de investidores americanos aproveitam a “crise do gado”, como foi chamada a histeria coletiva em busca de carne, para propor um novo modelo de negócios. A crise chegou ao seu ápice quando os rebanhos bovinos do mundo todo foram atacados por uma peste que dizimou 90% do que restou dos animais, e os que sobraram estavam fracos e debilitados. Em dez anos, os bois para consumo foram extintos. Os outros animais que eram criados em cativeiro para alimentação como porcos, búfalos, javalis e galinhas foram dizimados nos anos seguintes.

Durante alguns anos, países como Tailândia e Camboja descobriram rituais antigos da pequena ilha no arquipélago de Vanuatu, próximo da Austrália. Esses rituais consistiam no sacrifício de pessoas para a prática do canibalismo. A grande maioria reprovava a prática de alguns grupos de tailandeses e cambojanos de invadir necrotérios em busca de carne para sua alimentação. Com o passar dos anos, a prática começou a ser tolerada na região, até que foi descoberta no ocidente pelo empresário Willian Herald Rousseau. Willian era um americano poderoso, dono de empresas alimentícias espalhadas por todo o mundo. A maior delas, a WHR alimentos. A crise do gado quase fez sua empresa falir, até que ele descobriu o enorme potencial da carne humana. Sim, carne humana para consumo. O empresário conseguiu apoio parlamentar nos Estados Unidos, e no ano de 2093 conseguiu a aprovação da comercialização da carne humana, com dezenas de restrições, como somente o consumo de carne provinda de pessoas que tiveram morte natural era permitida, por exemplo.

No começo milhares de pessoas se manifestaram contra a comercialização de carne humana para consumo. Ruas foram tomadas por militantes e religiosos que eram contra a empresa. Durante anos, dezenas de ações judiciais foram movidas, até que finalmente, o povo cansou de lutar e deixou a empresa continuar seu negócio.

E com o esquecimento do povo, as irregularidades começaram. Pessoas eram sequestradas e assassinadas para ter sua carne vendida em supermercados clandestinos, enquanto a WHR alimentos mantinha o monopólio da venda legalizada de carne humana nos grandes supermercados. Comer carne de pessoas era um luxo e custava caro. Dependendo da nacionalidade das pessoas o preço variava e degustações de carnes importadas viraram moda nos supermercados mais finos da América.

O golpe final veio no ano de 2121: O filho de Willian, Gregory Herald Russeau, sucessor de seu pai nos negócios, foi eleito presidente dos Estados Unidos e criou uma lei para permitir que todas as pessoas tivessem acesso a carne, que isso não era mais privilégio somente dos ricos. Com maestria, o sucessor de Willian aprovou uma lei que permitia a criação de seres humanos em cativeiro para abate e consumo.

Agora, em pleno século XXII assistíamos pessoas sendo alimentadas com hormônios de crescimento para serem abatidas quando completavam 18 anos. Essa foi a única restrição que o congresso americano colocou na lei, que somente maiores de dezoito anos poderiam ser abatidos.

Isso não impediu que fazendas de pessoas fossem criadas. Sim, fazendas de pessoas. Seres humanos ficavam trancafiados em currais por anos, procriando e vendo seus filhos crescerem. As mulheres davam a luz a pelo menos quinze filhos durante a vida, antes de serem sacrificadas para alimentar os rebentos que ela punha no mundo. O leite materno das enclausuradas era utilizado na fabricação de laticínios, como queijos e yogurtes. Os homens eram castrados e toda a inseminação era feita de forma artificial, para garantir a qualidade da carne gerada.

Fazendas nesse formato garantiam qualidade de vida das pessoas de abate. Algumas fazendas clandestinas confinavam as pessoas em grades para que não se movessem durante anos para garantir uma carne com gordura farta e poucos músculos duros. Alguns recebiam alimentação diretamente pela traqueia, de uma gosma gordurosa com mais de 3.000 calorias por refeição.

E não era somente a carne que era aproveitada pela indústria. A pele humana era utilizada para fazer móveis e até roupas. O primeiro desfile que apresentou uma jaqueta de couro humano causou muita polêmica no mercado da moda. A medicina também se beneficiava extraindo órgãos de pessoas confinadas para tratar doenças dos ricos que tinham um plano de saúde caro. Até os ossos das pessoas eram utilizados para fertilização do solo, depois de triturados e tratados, serviam de suporte aos vegetais que os alimentariam.

Milhares de vegetarianos continuavam sua batalha, agora pela preservação de seres humanos e pela libertação das pessoas confinadas. Cartazes espalhados pelas ruas mostravam frases do tipo "Eu não como meu semelhante".

A WHR alimentos exibia constantemente na mídia campanhas e pesquisas que mostravam as pessoas felizes nas celas, sem sentir dor nem saber que seriam abatidas. Eles mostravam que não havia sofrimento e que era um processo rápido. Campanhas para alimentação saudável e receitas de como preparar pratos deliciosos de carne humana estavam expostas em seu site. Programas de televisão discutiam os melhores temperos e até a melhor forma de fazer um churrasco com a carne de pessoas.

Mas a criação de pessoas para abate era lenta e demorada. Era preciso tornar o processo mais rápido. Foi ai que aconteceu o evento que desencadeou a revolta do abate.

Uma organização internacional investigou as empresas da WHR alimentos e descobriu que 30% de suas carnes eram de pessoas sequestradas para esse fim. Mafiosos eram contratados para sequestrar, enclausurar e desossar as pessoas. Aqueles supermercados clandestinos agora vendiam a carne de assassinatos para supermercados sob a supervisão da WHR alimentos. A opinião pública ficou chocada e foi para as ruas.

No mundo inteiro, pessoas atacaram as redes de empresas da WHR alimentos, principalmente ranchos, criadouros e currais que mantinham pessoas presas para consumo. As pessoas presas não sabiam o que fazer com aquela liberdade. Elas andavam pelas ruas assustadas, perdidas e sem entender o motivo da desordem. Ainda eram animais, que não desenvolveram suas habilidades físicas e de raciocínio. Já as que foram sequestradas e estavam enclausuradas começaram sua revolta assassinando os funcionários dos estabelecimentos da WHR alimentos. Willian, que morreu de infarto em 2100, não viu o fim que sua empresa estava tendo e nem o de seu filho Gregory, morto em um atentado terrorista orquestrado por ingleses.

O mundo estava mudando novamente. Precisávamos cuidar das pessoas que nunca aprenderam a falar ou a raciocinar como seres humanos. O mundo se voltou contra os Estados Unidos quando descobriu toda a verdade. A ONU condenou todo e qualquer consumo de carne, tanto de seres humanos quanto dos poucos animais que ainda restaram na terra. O mundo precisava recomeçar. O apocalipse zumbi nunca acontecera, mas o holocausto canibal foi o mais próximo que chegamos do fim do mundo.

fonte:http://www.apocalipse2000.com.br/contos25.htm